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Incertezas Que Rondam as Economias Mundial e Brasileira

                                                   Jornal dos Economistas,  Corecon/Sindicon, Rio de Janeiro,  n. 361, Set. 2019,  p. 10-12.

Incertezas Que Rondam as Economias Mundial e Brasileira

                                                 Dercio Garcia Munhoz. Economista Emérito pelo Corecon-DF. Foi
                                                  Professor Titular de Economia da UNB. Ex-Presidente do Conselho
                                                     Federal de Economia e do Conselho Nacional da Previdência Social

As duas primeiras décadas no Século XXI registram modificações profundas na economia mundial, com reflexos tão amplos que avançaram no sentido de provocar alterações no equilíbrio global de poder econômico e político mundial, por mais de um século sob tutela americana. .

O fato inusitado observado mais recentemente foi proporcionado pela economia chinesa, que a partir dos primeiros anos do Século XXI passou a registrar um fenômeno extraordinário, quantitativo e qualitativo, tanto  no seio da própria economia como nas relações econômicas com o resto do mundo.  No aspecto quantitativo se destaca não apenas um crescimento do PIB real superior a 10,0% ao ano, uma vez que esse dinamismo já se verificava desde as duas ultimas décadas do Século XX;  a novidade é que o aumento da produção passara a incorporar mudanças estruturais na produção, com destaque absoluto para industrias tecnologicamente avançados. E paralelamente à presença marcante da industria de maquinas na arrancada produtiva, ocorre outro fato de extrema relevância, que foi o crescimento das exportações ligadas à nova matriz industrial  em todas as direções, e mais enfaticamente  para o mercado americano.   Esse duplo fenômeno – crescimento econômico alimentado por uma nova estrutura produtiva na transformação industrial, e expansão e forte diversificação das exportações, teria ainda, como conseqüência, um aumento paralelo nas importações chinesas, incluindo  matérias primas e alimentos, combustíveis e minerais.  Num movimento que refletia na expansão das economias supridoras de commodities, e como reflexo no poder de compra externo de tais regiões.    Configurava-se, portanto, um quadro de intenso relacionamento comercial da China não só com as economias industriais, como frente ao mundo em desenvolvimento.

Esse entrelaçamento da economia chinesa, interligado à nova dinâmica industrial, deslocava o país para uma posição de crescente destaque no volume de produção mundial – com o PIB quase triplicando entre 2000 e 2010, com expansão mais moderada entre 2010 e 2018 (77,4%), ainda que excepcionalmente elevada.  Nesses dois períodos, prenunciando o surgimento de fricções no concerto das nações, o aumento do PIB americano repetiu taxas globais extremamente baixas – em torno de 19,0%.   Não surpreende, portanto, que se a economia chinesa representava apenas 12,0% aproximadamente do tamanho da economia americana no ano 2000, em 2018 o produto chinês já se situava em  algo como 2/3 do PIB americano.

Como a evolução do comercio externo chinês vem mantendo clara sintonia com a dinâmica revelada pelo PIB do país, as exportações da China, que representavam aproximadamente um terço das vendas externas americanas no ano de 2000,  ao termino de 2017 já superavam em algo como 45,0% o valor das exportações dos Estados Unidos.

 

O redesenho da economia mundial inevitavelmente traria conseqüências, além das econômicas,  também na distribuição do poder político.  Donde seria previsível uma reação americana tentando ao menos conter a velocidade da consolidação de estruturas econômicas, comerciais e políticas do gigante chinês, no tabuleiro mundial.  Essa meta, porém, que visaria  neutralizar um movimento que pressiona no sentido do ocaso da liderança americana, parece extremamente distante de ser alcançada, dada a rapidez, abrangência e características da expansão econômica e comercial da China em apenas duas décadas

Parece evidente que os Estados Unidos não conseguiram definir uma estratégia que suportem seus objetivos políticos.  Pois recorrer à técnica do confronto, como Trump escolheu, dificilmente poderá reverter o novo panorama do poder econômico e político mundial; envolvendo ainda o risco de que venha a funcionar como um bumerangue,   afetando, pelos reflexos nos custos de produção dentro do país, e na competitividade das  exportações, a própria economia dos Estados Unidos.

Não que os americanos não devam, e não possam, buscar a redução dos déficits comerciais bilaterais com a China.  Afinal os interesses de ambos os países na consolidação e expansão do comercio bilteral é recíproco.  Mas não é desejável que o caminho para isso tenha como fundamento uma estratégia tipo macaco em loja de louça.

Esse quadro de relações conflituosas entre as duas grandes potencias vem  provocando preocupações no resto do mundo.  Isso porque as conseqüências, sejam quais forem, terão reflexos amplos no comércio mundial, e consequentemente em todas as demais economias.

 

              A Impotência Brasileira Diante do Conflito Comercial Entre Dois Gigantes

 

Para o Brasil e demais países do Mercosul um acordo final com a União Européia, ainda em fase preliminar, não teria forças para colocar a região a salvo da tormenta que China e Estados Unidos podem provocar na economia mundial, ultrapassando a fase presente de simples marolas.  E muito menos poderia funcionar como um amortecedor, na defesa da economia brasileira, a prometida criação da área de livre comercio entre o Brasil e Estados Unidos, ha pouco aventada pelo presidente americano.  Mesmo porque a iniciativa mais parece uma tentativa do Governo dos Estados Unidos em retardar, ou mesmo minar em definitivo, um acordo comercial Mercosul-União Européia;  não se devendo excluir a hipótese de que no bojo de eventual acordo inter-America, sejam implantados  mecanismos que impeçam que o Brasil possa vir a se beneficiar do conflito China x Estados Unidos, ocupando espaços que venham a ser criados no mercado chinês,  especialmente na área de commodities.

Riscos existem, portanto, para o Brasil, no delicado quadro mundial que se configura, a depender da evolução da crise entre os gigantes.  O que é mais preocupante num momento em que o Brasil, repetindo ingênua tentativa argentina dos anos 90, no Governo Menem, parece agora também ter optado pela busca de relações carnais com os Estados Unidos. Mesmo porque essa direção, a par de repulsiva para um pais soberano, seria um meio caminho para concessões unilaterais;  como, aliás, se verificou  com a inadmissível  entrega da Embraer para empresa americana, e ainda mais  praticamente a metade da estratégica Embraer Defesa;  ou agora, com a   pretendida abertura da Amazônia para mineradoras dos Estados Unidos atuarem na Amazônia, em áreas de reservas indígenas, que estaria nos radares do novo governo.

O Brasil, por outro lado, obrigatoriamente deve preservar suas relações comerciais com a China, pois afinal foi a partir da aceleração da nova economia chinesa, nos primeiros anos da década passada, que o país viu suas exportações multiplicadas, tendo as exportações para a China saltado de US$ 1,1 bilhão em 2000 para US$ 30,8 bilhões em 2010 e R$ 64,2 bilhões em 2018.  E no global as exportações brasileiras se elevaram de US$ 55,3 bilhões no ano de 2000 para US$ 239,9 bilhões nos doze meses de 2018.

O que se constata, num atestado inconfundível do efeito multiplicador do milagre chinês sobre as demais economias do mundo, é que as exportações do Brasil para os demais países – ou seja total off China,  cresceram de US$ 54,2 bilhões em 2000 para US$ 175,7 bilhões ao final de 2018. Significando a abertura, para o Brasil, de oportunidades comerciais inusitadas, em terceiros países, nos desdobramentos do milagre chinês.

O Brasil Carece de Estratégias para o Comércio e para o  Desenvolvimento

     Num mundo conturbado pelo surgimento de sucessivas barreiras tarifárias e não tarifárias envolvendo as duas maiores economias e mais importantes parceiros comerciais, a postura do Brasil tem sido a de mero expectador.  Não revelando ações práticas diante das repercussões que derivariam do agravamento da guerra comercial entre China e Estados Unidos.  Não que se possa interferir no conflito, dada a magnitude dos contendores e a impotência que também imobiliza instituições internacionais voltadas para a regulação do comércio e do câmbio, como a Organização Mundial do Comercio e o Fundo Monetário Internacional.   Mas o país poderia estar reexaminando suas políticas e regulamentações que interferem no comércio externo ao afetar os preços de exportações e importações, e consequentemente, a produção voltada para exportação.

É inconcebível, por exemplo, que o país mantenha uma política cambial anti-exportação e ao mesmo tempo pró-importação; e isso ocorre porque não consegue diferenciar o que seja uma variação cambial tida como predatória ao nível internacional, de uma variação que apenas compense diferentes taxas de inflação entre o país e o resto do mundo.  A primeira, dissociada das taxas de inflação e condenada como prática comercial, tem objetivos e efeitos concorrenciais, porque visa aumentar o ganho real unitário do exportador –  proporcionando redução dos preços internacionais, e paralelamente elevar o preço real unitário das importações – uma barreira à entrada de produtos estrangeiros.  Já  o segundo caso tem outra natureza, uma vez que, na medida em que a inflação interna seja superior à inflação externa, é essencial que se tenha como salvaguarda uma correção cambial que compense o diferencial entre as duas taxas.

Quando a inflação interna seja maior que a inflação externa, o aumento nos preços da moeda estrangeira, no mercado de câmbio local, por algo como o diferencial entre as taxas de inflação, consistiria numa desvalorização cambial não concorrencial, já que neutra quanto aos reflexos nos preços relativos.  Isso evitaria, por um lado, que o exportador se visse obrigado a aumentar os preços externos para compensar o aumento de custos, perdendo mercados; e paralelamente eliminaria a possibilidade de que os produtos importados ingressassem no país a preços artificialmente baixos, deslocando os produtores locais.

A correção cambial visando manter ajustada a paridade de poder de compra entre o pais e o exterior é vital para a recuperação industrial brasileira.  E jamais se deveria permitir que a taxa de câmbio vinculada a operações reais – exportações e importações de bens e serviços – sofra flutuações no mercado em função do fluxo global de divisas – as pressões de oferta e procura;  já que estas, de caráter aleatório, são influenciadas pelo fluxo de capitais de curto prazo, ágeis como próprio dos capitais especulativos.  

         A Política Brasileira com Taxas de Câmbio de Paridade entre 1968 e 1988

   Nos anos 60, quando a inflação brasileira de acelerou, o Brasil adotava um sistema de câmbio fixo, corrigido normalmente uma vez por ano.  Nesse momento, ao lado de inevitáveis lances especulativos, havia euforia inicial do setor exportador com o aumento do ganho unitário real; mas com o tempo os aumentos nos custos de produção paulatinamente iam minando os ganhos do exportador. Tudo funcionava como uma gangorra entre duas correções cambiais, num sistema de câmbio administrado;  que consistia, de fato, num modelo de câmbio fixo com correções de longo prazo.

Esse critério de ajuste cambial seria alterado em agosto de 1968, quando a taxa de câmbio real –  moeda nacional  ao  dólar americano – passou a sofrer sucessivas pequenas correções – em intervalos de  uma ou duas semanas, sem previsibilidade.  Com isso as receitas unitárias do exportador passaram a acompanhar a evolução dos custos, e os preços das importações passaram a acompanhar a evolução dos preços internos.  .

Esse sistema cambial, que teve forte impacto no comercio externo brasileiro, foi abandonado em 1988, com a introdução de taxas flutuantes, influenciadas pelos fluxos globais de divisas estrangeiras.  Foi o inicio da derrocada da industria, agravada pelos congelamentos das taxas de câmbio nos anos 90, com o Plano Real, e posteriormente, nas primeiras décadas do Século XXI, com os capitais de curto prazo imperando sobre a economia real.  Com o que o Brasil foi-se transformando numa economia de caráter estritamente rentista, ficando num segundo plano o passado de economia produtiva,  dinâmica, centrada nas manufaturas, geradora de empregos e rendas.

Fragilizado pela ausência de uma estratégia voltada para o crescimento econômico, pelo aumento explosivo da divida publica diante de juros internos sufocantes, com 45,0% do orçamento fiscal (exclusive INSS) comprometidos com encargos financeiros do Tesouro,  o Brasil vê com receios naturais a eventualidade de uma crise mundial que desorganize os mercados e o comercio internacional. Pois a venda de commodities, associada aos avanços proporcionados a partir do milagre chinês, constitui a única alavanca que garante ao país um mínimo de organização econômica e social internamente.  Equilíbrio que a reforma da previdência, pelos desastrosos reflexos no mercado de trabalho e na renda familiar, dificilmente se sustentará.  Donde se conclui que, além dos riscos externos, o Brasil se acha diante de uma desagregadora política econômica interna,  que avança sustentada por acordos políticos e posturas empresariais não republicanos.

-dgm./13.08.2019

 

 

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foto autor do post

Dércio Garcia Munhoz

Economista